A saga de Scorsese

A saga de Scorsese

Diretor supera obstáculos de produção e faz um filme brilhante

Rodrigo Fonseca

Repórter do JB

Para ser curto e objetivo: Gangues de Nova York (Gangs of New York, EUA, 2002), que chega sexta-feira ao Brasil, é brilhante. Mesmo sem ter a visceralidade de Taxi driver ou de A última tentação de Cristo – as duas obras-primas de seu diretor, o artesão Martin Scorsese, 60 anos -, o longa-metragem seduz de forma arrebatadora por um leque de fatores que abrange desde a fotografia de Michael Ballhaus à entrega de Daniel Day-Lewis a seu papel, passando pelo binômio energia e carisma de Leonardo Di Caprio.

Mas a penosa estrada que o filme percorreu impede que qualquer análise pegue atalhos preguiçosos. O que Scorsese realizou só pode ser entendido em sua força total quando se sabe seu histórico. Afinal, das provações que este ex-seminarista encarou em quatro décadas de cinema, Gangues de Nova York foi o calvário mais doloroso.

E não se trata apenas do tempo que gastou acalentando o objetivo de tirar do papel esse épico sobre a formação do submundo nova-iorquino, disfarçado na saga da vingança do jovem Amsterdam (Di Caprio) contra o assassino de seu pai, Bill “O Açougueiro” Cutting (Day-Lewis), e seu amor pela prostituta Jenny (Cameron Diaz). A maior cruz que o diretor carregou foi derrotar um fantasma chamado O portal do paraíso (1980). Foi essa superprodução dirigida por Michael Cimino que, indiretamente, quase destruiu Gangues de Nova York.

Desde os anos 70, Scorsese já brigava por um financiamento para colocar na tela o livro The gangs of New York: an informal history of the New York underworld, um ensaio jornalístico do repórter Herbert Asbury (1891-1963) sobre o crime organizado na América, já editado em português pela Globo. Mas quando o longa-metragem de Cimino, sobre o preconceito dos caubóis contra imigrantes russos, fracassou nas bilheterias, os estúdios se fecharam para qualquer projeto que reunisse os conceitos épico, reflexão sócio-política e xenofobia.

Depois de muito esforço, Scorsese encontrou quem bancasse seu “devaneio”: os irmãos Bob e Harvey Weinstein, sócios da Miramax. O problema é que a medida em que os custos inflacionavam (eles fecharam em US$ 97 milhões) e as filmagens (realizadas em Roma, em cerca de 127 dias) traziam dores de cabeça a seus profissionais, o nome maldito de O portal do paraíso, que teve contratempos parecidos, era evocado. Mas, apesar dos obstáculos que atrasaram seu trabalho, Scorsese saiu vencedor ao provar que a energia contestadora que o alimentou nos anos 70 ainda guia sua mão na hora de comandar seqüências. As de Gangues de Nova York são 100% eletrizantes.

Scorsese não filma a violência com a fugacidade pueril da câmera do cinema-pipoca. Suas lentes enfocam o combate pela afirmação do lugar dos irlandeses na América (questão central no roteiro) com tanta seriedade que transformam batalhas em alegorias para a disputa de poder. De cada lado do cabo-de-guerra que Gangues de Nova York apresenta estão as mãos que construíram a América. A própria música do U2 que abrilhanta o filme, The hands that built America, ilustra isso. Prova de que, apesar dos obstáculos, Scorsese deu seu recado, afirmando-se de uma vez por todas como o maior diretor americano na atualidade.

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