A Dublin de Bono: “bem longe de onde eu venho”

A Dublin de Bono: “bem longe de onde eu venho”

O jornal Irish Times, da Irlanda, publicou esta imperdível reportagem, fruto de uma conversa do jornalista Brian Boyd com Bono e The Edge. Confira a tradução.

Enquanto brigava com seu novo álbum, o U2 buscou inspiração na Dublin dos anos 1970, um lugar de violência oculta, o lar de uma nova cena da new-wave e de um grupo de amigos que ainda não eram o U2. “Muita merda aconteceu”, diz Bono

Bono se inclina em direção ao meu rosto até que nossos narizes quase se toquem, e canta, sem acompanhamento: ““Life begins with the first glance, the first kiss at the first dance, all of us are wondering why we’re here, in the Crystal Ballroom underneath the chandelier… We are the ghosts of love and we haunt this place, in the ballroom of crystal lights, everyone is here with me tonight, everyone but you”. [“A vida começa com o primeiro olhar, o primeiro beijo na primeira dança, todos nós estamos nos perguntando por que estamos aqui, no Salão de Cristal debaixo do lustre… Nós somos os fantasmas do amor e assombramos este lugar, no salão de das luzes de cristal, todo mundo está aqui comigo hoje à noite, todo mundo menos você”] É sean-nós (*dança irlandesa) de óculos escuros.
N.T. – The Crystal Ballroom é uma das músicas inéditas que estarão na edição deluxe de Songs of Innocence.

“Eu preciso te contar uma coisa muito estranha sobre esta canção”, diz ele. “Chama-se The Crystal Ballroom, que costumava ser o nome do McGonagles (*casa de shows) na South Anne Street [atualmente fechado]. Uma geração inteira de dubliners ia a bailes no Crystal Ballroom, e muitos casais se conheceram lá. Minha mãe e meu pai costumavam dançar juntos no Crystal Ballroom, de modo que a música que eu acabei de cantar, e que ainda não foi lançada, sou eu imaginando que estou no palco do McGonagles com minha banda nova que se chama U2 – e de fato fizemos vários shows importantes lá, no início. E eu olho para a plateia e vejo minha mãe e meu pai dançando romanticamente ao som do U2 no palco”.

Bono respira fundo e, falando devagar, diz: “Acabo de perceber que ontem fez 40 anos que minha mãe morreu, e que hoje estamos aqui tocando nosso novo álbum sobre Dublin, que é sobre a minha família e o que aconteceu comigo quando adolescente”.

“Minha mãe morreu no funeral do pai dela. Ela teve um aneurisma cerebral. Eu só tinha 14 anos. E nesta canção eu canto “Todo mundo está aqui esta noite, todo mundo menos você”. E esse sou eu querendo ver minha mãe dançar novamente no Crystal Ballroom, e que ela visse o que aconteceu com o filho dela”.

Tudo sobre minha mãe

Estamos em uma sala sem janelas na sede da Apple no Vale do Silício, na cidade californiana de Cupertino. O U2 acaba de ajudar a lançar uma série de produtos da Apple, e foi anunciado que seu novo álbum, Songs of Innocence, foi dado aos clientes do iTunes.

The Edge também está aqui. Ele mexe no celular, encontra Crystal Ballroom e aperta o play. Silêncio na sala enquanto a música toca. Depois de uma longa pausa, um claramente chateado Bono sussurra: “o espírito dela estava conosco hoje”.

Este novo álbum do U2 poderia ser o “Tudo Sobre Minha Mãe” de Bono. A música Iris (Hold Me Close) – Iris era o nome de sua mãe – o mostra cantando sobre a morte prematura dela. “The ache in my heart is so much a part of who I am (…) Hold me close and don’t let me go (…) I’ve got your life inside of me (…) We’re meeting up again”. [“A dor no meu coração é uma parte tão grande de quem eu sou (…) Me abrace forte e não me solte (…) Eu tenho a sua vida dentro de mim (…) Vamos nos encontrar de novo”]

Ao se levantar e caminhar pela sala, ele destaca um trecho da letra. “Eu canto um verso que diz “Iris standing in the hall, she tells me I can do it all” [“Iris está parada no corredor, ela me diz que eu posso fazer tudo”], e então tem a típica frase de mãe que ela me dizia: “You’ll be the death of me” (“você ainda me mata”). Mas não fui eu. Eu não causei a morte dela. Eu não a matei”.

“A [figura da] mãe é tão, tão importante no rock. Mostre-me um grande cantor e eu te mostro que é alguém que perdeu a mãe muito cedo. Há Paul McCartney, há John Lennon. Olhe para Bob Geldof e o que aconteceu com a mãe dele”.

“No hip hop é o contrário, é tudo sobre o pai – ser abandonado pelo pai e ser criado por uma mãe solteira. Mas, para mim, é tudo sobre a mãe. Eu tinha raiva e tristeza [por causa da] minha mãe. Eu ainda tenho raiva e tristeza por isso. Mas eu canalizei essas emoções na música, e eu ainda o faço. Tenho poucas lembranças de minha mãe, mas todas elas estão na música Iris”.

A mãe de Bono o viu cantar no palco apenas uma vez, antes do U2, mas Bono já disse que, se ele pudesse reviver apenas um momento de sua vida, ele iria voltar ao dia que cantou na frente de sua mãe pela primeira vez.

Bono aos 14 anos de idade – na época apenas Paul Hewson – tinha uma relação tensa com seu irmão Norman (oito anos mais velho) e com seu pai, ao crescer em Cedarwood Road, em Glasnevin, no norte de Dublin, após a morte da mãe.

Sem mãe, Bono se encontrava batendo à porta de seus vizinhos: dos Rowens na hora do almoço, dos Hanveys na hora do chá. Derek Rowen se tornaria o artista Guggi. Fionán Hanvey se tornaria o músico Gavin Friday, do Virgin Prunes.

Na nova canção Cedarwood Road Bono fala sobre a árvore cerejeira no jardim [da casa] dos Rowen: “I was looking for a soul that’s real. Then I ran into you, and that cherry blossom tree was a gateway to the sun” [“Eu estava procurando por uma alma que fosse real. Então eu te encontrei, e aquela árvore cerejeira era uma porta de entrada para o sol”] Nos subúrbios de Dublin da década de 1970, Bono diz, a cerejeira”parecia ser a coisa mais luxuosa”.

The Edge então interrompe, incluindo na conversa alguns detalhes sobre a política da Câmara Municipal de Dublin sobre as cerejeiras. Como ele sabe disso eu não faço ideia.

Finglas, Cabra, SFX

Songs of Innocence mostra o U2 tentando se reconectar com os prazeres adolescentes do final da década de 1970 em Dublin e seu cenário new-wave, centrado no McGonagles, no Dandelion Market e com incursões estranhas no SFX ou no Top Hat, em Dún Laoghaire.

“Somos nós tentando descobrir por que queríamos estar em uma banda, as relações em torno da banda e nossas primeiras jornadas – geográficas, espirituais e sexuais. Foi difícil e demorou anos. Vamos colocar desta forma: muita merda aconteceu “, diz Bono.

Com canções sobre Finglas, sobre ir ver os Ramones tocar no Cabra Grand e pegar um ônibus até College Green para ver o The Clash tocar no Trinity College, este álbum parece décadas distante de seu último. E de certa forma é.

Quando Bono conversou com o Irish Times na época do lançamento de No Line on the Horizon, em 2009, ele levou este repórter até a sala de sua casa em Dalkey, abriu as janelas e mostrou sua vista do Mar da Irlanda, um panorama em que nenhuma linha era visível no horizonte – não naquele dia, pelo menos. A recessão na Irlanda ia de mal a pior, e um rock star multimilionário colocou em seu álbum um nome inspirado na suntuosa vista que ele tem todos os dias.

Mas a imagem que deu a volta ao mundo nesta semana da festa de lançamento em Cupertino era muito diferente: um álbum de vinil revestido de papel feito para imitar a aparência do primeiro lançamento da banda, em 1979, o EP U2-Three.

Os bombardeios em Dublin

Em 2009, Bono me mostrou uma obra de arte que Frank Sinatra tinha apresentado a ele; hoje ele está falando de Superquinn em Finglas (o primeiro lugar em que pediram seu autógrafo, após a primeira aparição da banda no programa Late Late Show), sobre a vaga inicial de banda de abertura para o The Stranglers no Top Hat (“Eles nos trataram como merda, então roubamos todo o seu vinho e juramos que, quando chegasse a nossa vez, trataríamos a todos com respeito”) e sobre pegar um ônibus para Marlborough Street para fuçar na Golden Discs (*loja de discos) de lá.

Esta experiência foi trazida para a nova música Raised By Wolves, uma espécie de Sunday Bloody Sunday sobre os atentados de Dublin de 1974. “As bombas foram armadas para explodir ao mesmo tempo: numa sexta-feira à noite, às 17h30”, diz ele. “Naquela época, em 1974, às sextas-feiras eu estaria na Golden Discs na Marlborough Street, a uma esquina de onde as bombas explodiram. Mas naquele dia eu tinha ido de bicicleta para a escola, então não peguei o ônibus para a cidade depois, como de costume”.

Mas este não é um álbum pintado com as cores da nostalgia. Bono também lembra a violência e as surras incessantes dadas nos membros do U2 e nos seus amigos do Virgin Prunes. “Não estou exatamente falando dos Black Catholics (*termo depreciativo para se referir aos Protestantes irlandeses que apoiam a submissão da Irlanda do Norte ao Reino Unido) aqui, mas sim sobre o quanto atraíamos a violência pelo nosso visual e pelas bandas de que gostávamos”, diz ele. “Gavin Friday costumava levar chutes na cabeça regularmente. Mas até aí, Gavin sempre teve uma cabeça grande e burra”.

“Então eu fui um pouco mais longe e me lembrei de todas as violências infligidas às mulheres por seus maridos, os espancamentos que as crianças experimentaram por parte dos próprios pais e como, naquele momento especificamente, os padres abusavam sexualmente de crianças pequenas”.

E houve uma auto-aversão musical. Quando Bono tinha 17 ou 18 anos ele acreditava que não tinha esperança de estar em uma banda. “Isso foi porque eu cantava como uma menina. E eu nunca ia conseguir ser um cantor de punk rock, ou mesmo um cantor de rock, com a minha voz de menina”, diz ele. “Mas eu encontrei a minha voz através de Joey Ramone, ouvindo-o cantar em um show em Dublin. Joey fazia um tipo de voz de menina quando cantava – e essa foi a minha porta de entrada”.

Mais cedo naquela manhã, no dia do lançamento da Apple, eles tocaram a nova música The Miracle (of Joey Ramone), o que transportou os chefes de tecnologia em Cupertino, conscientes ou não, ao Cabra Grand.

“Eu queria que fôssemos uma banda melhor”

A auto-aversão ainda está lá. “A verdade é que eu queria que fôssemos uma banda melhor. Queria que fôssemos uma banda mais talentosa. A razão pela qual este novo álbum não aconteceu para nós durante estes anos é essa”, diz Bono.

The Edge provoca. “Como banda nós sempre fomos poder ou barulho. Mas agora U2 tem muitas áreas cinzentas. Não é mais poder, o que é bom; nem barulho, o que é ruim. Há de se entender quando isso não está acontecendo com a gente, e a coisa mais destrutiva aqui é quase acertar”.

“Também tem a humildade excruciante pela qual eu tenho que passar esses tempos”, disse Bono. “O fato de eu achar que nós somos incapazes de [obter] grandeza. E Jimmy Iovine, um ex-produtor de álbuns do U2, me disse algo difícil. Ele disse: ‘Você está bem longe de onde você veio’. E isso doi. Eu moro em Dalkey, mas eu sou da Cedarwood Road, e eu sei o que ele quis dizer sobre mim quando falou essa frase. Para mim foi realmente embaraçoso ouvir isso. E é precisamente por isso que este álbum é ‘Dublincêntrico’ “.

Álbuns, dinheiro e turnês: Bono sobre…

Um segundo álbum, que Bono chama de álbum “irmão” de Songs of Innocence, chamado Songs of Experience, será lançado em breve. “Nos próximos tempos vamos colaborar com a Apple em algumas coisas legais, e Songs of Experience deve estar pronto em breve. Mas sei que eu já disse isso antes…”.

Moral da história – Ao contrário das afirmações de que U2 deu Songs of Innocence para a Apple distribuir de graça, Bono confirma que a banda recebeu dinheiro pela transação. “Nós fomos pagos”, diz ele. “Eu não acredito em música grátis. A música é um sacramento”.

A turnê – “Não temos uma data de início confirmada para a próxima turnê do U2, mas será no próximo ano”, diz Bono. “Precisamos de boas ideias para voltar a tocar ao vivo. Esperem algo novo, algo fresco”.
Irish Times

2 Replies to “A Dublin de Bono: “bem longe de onde eu venho””

  1. Parabéns pela tradução, Priscila. Trabalhão!!!!
    Esta entrevista está sensacional, vale a pena ler cada palavrinha.

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