Scorsese trabalha na arqueologia da nação americana

Scorsese trabalha na arqueologia da nação americana

Em ‘Gangues de NY’, ele acusa uma estrutura formada à base de intolerância e violência

MARCELO BERNARDES

Especial para o Estado

NOVA YORK – No fim do século 19, o reduto dos imigrantes irlandeses na cidade era os Cinco Pontos, uma intersecção de cinco ruas próximas do bairro atual de Chinatown. Os historiadores descrevem o local como de excessiva violência, miséria e sujeira. Até Charles Dickens, numa visita a Nova York em 1942, descreveu a desolação do lugar.

Essas ruas estreitas divergindo para a esquerda e direita e sempre fedendo com sujeira e podridão. Libertinagem tornou as casas prematuramente velhas.

Veja como vigas podres estão caindo e como as remendadas e quebradas janelas parecem franzir, como olhos que foram machucados em lutas de bêbados. Muitos desses porcos vivem aqui.”

Para Martin Scorsese a realidade daquele lugar tinha de ser crua. “Queria ser o mais fiel ao mundo que estava retratando”, explica. “Gangues de Nova York é um filme tribal e quando se enfoca o ritualístico, evocamos a guerra, como o mundo em que vivemos agora”, explica. “Tentei ser o mais literal possível com a violência que existiu, mas você precisa entender o que o público pede hoje em dia. E hoje, infelizmente, o público, principalmente com as produções hollywoodianas e algumas agora vindas da França, está acostumado com um barulho insuportável”, continua.

É essa cacofonia que estimula o público e o faz entrar na história. Poderia ter feito uma cena de batalha, como a do começo do meu filme, silenciosa, mas o público jovem, para quem queria contar essa história, não ia entender a futilidade da brutalidade que estava querendo mostrar. Foi por isso que pedi para o Peter Gabriel compor aquele rock no começo.”

Ao ser indagado se Gangues de Nova York poderia ter sido mais violento e sanguinário caso filmado 10, 15 anos antes, Scorsese diminui a velocidade de suas respostas e torna-se reflexivo. “Eu acredito que conseguiria ser um pouco mais literal, sim”, diz. “Mas, mesmo nos anos 70, você tinha de ser condescendente com alguma coisa. Sempre estava tentando rodar a violência de meus filmes de uma maneira criativa, pois, do contrário, você ia ter um filme que era derivativo de Sam Peckinpah, o cineasta que influenciou nossa turminha”, prossegue.

Por sinal, quando mostrei Motorista de Táxi para o conselho americano de censura, Sam Peckinpah estava presente à sessão e, ao término dela, me disse: ‘Por que você não desiste?’ E esse é um dos grandes mistérios nunca desvendados por mim: como Sam estava sempre e muito bêbado, não sei se ele dizia para eu desistir de imitá-lo, de evitar que a censura perseguisse o meu filme ou que desistisse mesmo era de filmar!”, diverte-se.

Sobre a participação de Bono na trilha sonora, Scorsese diz que era uma escolha óbvia, uma vez que os integrantes do grupo U2 são os mais famosos filhos da Irlanda da atualidade.

Mostrei uma versão mais longa do filme para Bono e ele disse que se tratava da história do bom ladrão”, lembra Scorsese. “E eu perguntei o que ele queria dizer com isso e Bono respondeu: ‘Martin, o Leonardo é o bom ladrão, aquele que morreu ao lado de Jesus Cristo!’”

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