CINEMA – Irlanda do Norte e Domingo Sangrento despertam nas telas

CINEMA – Irlanda do Norte e Domingo Sangrento despertam nas telas

Juliana Resende/BR Press

(São Paulo, BR Press) – O assunto é quase doméstico e a casa em questão fica a milhares de quilômetros do Brasil – onde o caos social mata mais que a guerra da Bósnia. O fato aconteceu há 30 anos, num país que tem o tamanho do estado norte-americano de Connecticut, ou, para se ter um comparativo mais eficiente de suas dimensões modestas, do tamanho de Yorkshire, na Inglaterra. O lugar é a Irlanda do Norte – um país pequeno e barulhento, cheio de personalidade e cultura na mesma proporção que problemas. Anexada ao Reino Unido – o que tem sido grande motivo da violência interna, além dos conflitos religiosos (católicos e protestantes dividem o mesmo território e não se bicam) —, a Irlanda do Norte foi palco do chamado Domingo Sangrento, o fatídico Bloody Sunday, aquele mesmo que todo mundo conhece, cantado com emoção na clássica canção do U2 (o grupo é originário da República da Irlanda, país vizinho independente do Reino Unido).

Pois o Domingo Sangrento matou 13 pessoas e deixou mais 15 gravemente feridos, em 30 de janeiro de 1972, numa infeliz ação do exército britânico, em reprimenda a uma manifestação na cidade de Londonderry, a qual unia católicos e protestantes (coisa rara) em torno de uma causa: direitos civis. O evento, que tinha finalidade pacífica – dizem as mais fidedignas fontes que o IRA (Exército Republicano Irlandês, poder armado paralelo ao britânico, que promove uma guerrilha urbana), que já existia e detonava na época, não havia sido oficialmente convocado —, começou com parte da juventude católica e separatista atirando habituais pedras no soldados britânicos e acabou em tragédia.

A polêmica que ainda perdura até hoje é: teriam os ingleses atirado – primeiro — para matar deliberadamente, ou simplesmente se defenderam dos ataques dos “terroristas”? O diretor britânico Charles McDougall não tem mais dúvida: os ingleses tinham ordens para mandar bala nas pessoas. Mas a dúvida o perseguiu por tantos anos, que o levou a produzir o contundente documentário Domingo (Sunday, Inglaterra/Irlanda do Norte, 2002), exibido em três sessões na 26ª Mostra BR de Cinema, com a presença do próprio. “Esse episódio sempre foi um mito para minha geração e fazer o filme foi uma forma de expurgá-lo”, contou McDougall, em entrevista exclusiva à agência BR Press.

O Domingo Sangrento é um fato localizado, com poucas vítimas se comparado às grandes tragédias da atualidade, mas está rendendo ao ficar, digamos, “balzaquiano”. Outro documentário, Domingo Sangrento, escrito e dirigido por Paul Greengrass, está em cartaz no Rio de Janeiro. Sem data para estrear em outras capitais brasileiras. Ele trata em particular de duas histórias de dois líderes da marcha: Ivan Cooper, um protestante que vive em área católica e é um fervoroso defensor da paz, e Gerry Donahue, um rebelde católico que namora uma protestante e está mergulhado no conflito. O filme foi ganhador do Urso de Ouro no Festival de Berlim em 2001.

Atualmente a Irlanda do Norte voltou aos noticiários por causa de uma crise política, causada supostamente pela descoberta de espionagem no parlamento norte-irlandês, conduzida pelo IRA. A guerrilha estaria se infiltrando nos despachos do parlamento por meio de seu braço político, o Sinn Fein, partido de orientação católica e separatista, que governa o país junto com o partido protestante Unionista, cujo nome já diz a que veio. A crise levou o Reino Unido a suspender em 18/10 o governo autônomo da Irlanda do Norte. O primeiro-ministro britânico Tony Blair disse que só voltará aos termos do acordo de paz, datado de 1998, caso o IRA se comprometa a sair de cena para sempre – o que é pouco provável.

Saiba mais sobre a singular história da Irlanda do Norte – e sua paradoxal busca pela paz —, na entrevista a seguir com Charles McDougall.

Por que você, sendo inglês, decidiu fazer um filme sobre o Domingo Sangrento?

Charles McDougall – Porque para os ingleses o evento foi constrangedor e ao mesmo tempo misterioso, pouco comentado. Na verdade ouvíamos falar e não sabíamos direito o que acontecera. Ainda é um tabu. Eu era um garoto quando aquilo aconteceu (hoje o cineasta tem 40 anos). Foi uma maneira de passar as coisas a limpo.

Isso de fato aconteceu? Por quê?

Charles McDougall – Primeiro temos o trabalho do roteirista, Jimmy McGovern, que é reconhecido por seu trabalho 100% confiável ao produzir textos para documentários. Depois temos os meus estudos e centenas de entrevistas feitas com as pessoas diretamente envolvidas com o evento, na Irlanda do Norte. No filme a história dos envolvidos é totalmente baseada em fatos reais. Alguns personagens são interpretados por gente da mesma família daqueles que morreram. Pesquisei em diferentes fontes – o que me fez chegar perto da verdade.

Como as pessoas interpretaram o fato de você ser um inglês querendo contar algo sobre a Irlanda do Norte?

Charles McDougall – No início elas tinham muita desconfiança e eu tinha medo disso, do quanto seria difícil. Mas, com o passar do tempo, elas foram ser abrindo, eu ía à casa delas, conversávamos muito e prometi que mostraria o filme primeiro a elas.

E como foi a reação destas pessoas envolvidas com o fato ao verem o filme? Charles McDougall – Foi muito emocionante … Foi como se eles dissessem: “Enfim, alguém contou nossa história”. Foi com um alívio e tínhamos até médicos na sala de projeção. Muitos não aguentaram e tiveram de se retirar. É algo muito duro.

Como foi a reação dos ingleses? Você disse que o exército inglês se recusou a colaborar nas filmagens…

Charles McDougall – Bem, a imprensa mais conservadora achou, mesmo antes de ver o filme, que seria ia ser propaganda (do IRA e da questão da Irlanda do Norte). Depois, quando o filme foi lançado, as resenhas foram isentas, mais pelo reconhecimento da seriedade e imparcialidade do traballho de Jimmy McGovern do que pelo fato em si, denunciado pelo filme. Quanto ao exército britânico, infelizmente, não houve negociação.

Você acredita que os soldados que mataram pessoas serão considerados culpados no julgamento que está em curso em Londres?

Charles McDougall – Sim, mas acho que eles não serão punidos. Sei que o tribunal viu o filme. Mas eles estão nesse julgamento há dois anos e a sentença só deve sair daqui a mais dois anos. Há juizes da Austrália e Canadá, junto com ingleses, numa tentativa de conferir ao julgamento isenção.

Foi difícil conseguir dinheiro para fazer um filme sobre um fato que é um tabu?

Charles McDougall – Não foi difícil porque o roteirista é famoso. Jimmy McGovern tem sido meu parceiro em todos os meus filmes: Hillsborough (1996), Heart (1999) e Sunday (2002).

Seu primeiro filme trata sobre o que? Charles McDougall – Sobre um jogo de futebol no qual 96 pessoas morreram. Elas foram esmagadas. Foi num jogo do Liverpool, do qual sou torcedor. Eu estava lá (na cidade de Shefield) e vi. Houve negligência policial, mas ficou por isso mesmo.

Morreu mais gente no Domingo Sangrento…

Charles McDougall – Pois é. Ambos os filmes tratam de assuntos diferentes, mas da mesma manipulação de informações e também de mentiras.

Você passou quanto tempo na Irlanda do Norte? É uma sociedade realmente violenta?

Charles McDougall – Fiquei seis meses lá. Há muita tensão, mas os jovens não querem mais violência. Alguns terroristas querem a continuidade da violência, porque eles se alimentam dessa indústria.

Você acredita na continuidade do processo de paz mesmo agora, depois das acusações contra o IRA?

Charles McDougall – Sim, quero acreditar que sim.

Como você avalia o Domingo Sangrento num contexto mundial, onde há eventos muito mais violentos ainda em curso, onde civis convivem com abusos de poder e guerras, com zero em direitos humanos e ainda o terrorismo?

Charles McDougall – Contei uma história universal, que envolve pessoas, uma luta básica e conflitos emocionais. As pessoas estão conectadas e são solidárias com suas causas. Sabemos que o mundo precisa da paz. Senti isso no Brasil, onde sei que há muito problemas e muita violência. Quero agradecer essa solidariedade, que me faz acreditar ainda mais no fenômeno dessa conectividade.

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